A Bíblia de Michelangelo - Parte I


O teto da Cappella Sistina - Michelangelo


Durante minha peregrinação encontrei uma capela que nunca entrei, da qual sou tão intimo que tenho de lembrar-me constantemente do fato de jamais ter entrado por suas portas. A capela Sistina foi, para mim, um encontro com a liturgia das imagens, com a paradoxalidade de ver, diante da grandeza da obra, minha realidade mortal, minha condição de finitude, ao passo que, diante das imagens que representam séculos se descortinando diante dos meus olhos, consigo imaginar o que é ser eterno. É interessante o convite de perceber-se hora como ser onisciente, hora como mortal impotente na história, me aproximando de Deus tanto quanto da minha humanidade. Desejo que entrem comigo, que vejam, que encham a retina e o espírito com a genialidade da teologia imagética de Michelangelo.


A Capela Sistina foi concebida inicialmente para ser a "Capela Papalis" ou "Capela Pontifícia", tinha seu teto decorado em azul, com estrelas de ouro, obra do pintor Matteo d'Amelio. Quando o Papa Giulio II delegou a Michelangelo a tarefa de decorar a abóbada da Capela logo surgiu o obstáculo de organizar as histórias sobre a superfície de cerca de 550 metros quadrados a 20 metros de altura. Uma carta deixada pelo artista mostra-nos que inicialmente seu projeto consistia em pintar cenas dos doze apóstolos e uma decoração geométrica. No entanto, Michelangelo não se deteve muito tempo ao pedido do Papa , após alguns esboços demonstrando a sua perplexidade ante o pedido, obteve a carta branca do Papa para elaborar seu projeto iconográfico. Assim, nasce no teto da capela um grande livro ilustrado, com 9 cenas retiradas do livro de gênesis, 12 quadros laterais retratando os profetas bíblicos e as sibilas mitológicas, 4 pendentes com flashes da história de Israel, 8 velas e 12 lunetas com os antepassados de Cristo.

Michelangelo não demonstrou estar comprometido com a visão medieval, onde o coletivo determina o modo como o indivíduo deve vivenciar sua espiritualidade, mas sim com uma nova concepção de mundo, mais individualista, mas que, ao mesmo tempo, volta-se para fora olhando o que é secular e reinterpretando o que fora, até então, pregado como ideal religioso. Não são as ruas de ouro da nova Jerusalém que agradam o homem renascentista, mas as ruas dos filósofos, a acrópole, as ruas sábias de Atenas. Dentro desta visão antropocêntrica o artista, que antes era o pintor da publicidade religiosa da Igreja Romana, agora impõe seu olhar sobre os temas bíblicos. Dessa forma, não temos na Capela Sistina uma simples representação de temas religiosos, mas sim uma potente representação imagética da concepção teológica de Michelangelo. Nela podemos perceber sua visão a respeito do tema tratado, o Antigo Testamento, onde Michelangelo propõe em sua obra a concordância entre o mundo “sub lege” e o mundo “sub gratia”, o mundo judaico-cristão e a mitologia dos gregos, o olhar renascentista e o tema universal da busca da espiritualidade.


LINHAS DE LEITURA

É impossível ter apenas um olhar sobre essa obra. Assim como numa escultura se pode ter diversos olhares, de acordo com a posição do apreciador ao redor da obra, Michelangelo nos oferece diversas vias de apreciação, diversos olhares sobre a mesma obra, de forma que podemos num instante seguir a via dos profetas e das sibilas, noutro andar pelos episódios do livro de Gênesis, ou ainda ler a obra pela via dos por menores. Encontramos, nessa obra, a ruptura com a visão quatrocentista de composição, desfazendo as relações espaço-composição e narração-cronologia com a finalidade de abrir novas possibilidades de leitura e romper com os ditames renascentistas, o que faz com que Michelangelo caminhe rumo ao maneirismo e o posterior barroco, oferecendo ao apreciador figuras que transitam entre o sagrado e o profano dentro de um universo de imagens que se sobrepõem às estruturas arquitetônicas da capela.


Nas áreas centrais os seguintes episódios de Gênesis:

· A separação entre Luz e Trevas;
· A criação do Sol e da Lua;
· A separação entre terra e águas;
· A criação de Adão;
· A criação de Eva;
· O pecado original e a expulsão do Paraíso;
· O sacrifício de Noé;
· O dilúvio universal;
· A embriaguez de Noé.


Nas áreas laterais alocou as figuras de sete profetas e cinco sibila. Onde os primeiros foram representados de forma a evidenciar um crescente da revelação profética, de forma que, quanto mais nossa visão se aproxima do altar, mais percebemos o envolvimento do profeta com a revelação dada a ele. Os profetas representados aqui são:

· Daniel
· Ezequiel
· Isaias
· Jeremias
· Joel
· Jonas
· Zacarias

As segundas são personagens da mitologia grega que, sob a inspiração de Apolo, possuem poder profético. O interessante é notar a relação criada pelo artista entre elas e os profetas do Antigo Testamento, intercalando o sagrado dos profetas e o profano das sibilas e construindo um caminho de leitura muito próprio e cheio de riqueza. As sibila representadas são:

· Ciméria, ou Cumana;
· Prisca, a sibila Eritréia
· Dafne, a sibila Délfica
· A sibila Líbia
· Sambeta, sibila Pérsica


No canto encontramos pendentes com representações de várias cenas da história do povo de Israel segundo foram narradas nos vários livros do Antigo Testamento, tais como: David e Golias; a punição de Amã, a Serpente de Bronze e Judite e Holofernes.

No próximo post sobre a Bíblia de Michelangelo apreciaremos a obra pela via das imagens centrais, que narram cenas do livro de Gênesis.

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